A Travessia do Atlântico

A odisséia da imigração italiana é narrada por inúmeros livros, dentre os quais li muitos, mas, particularmente no livro Bibano Cristiana nella Storia, há um capítulo com um título que me chamou a atenção: Il diritto del Povero: L’Emigrazione (O direito do pobre à imigração). Não só a mente do trabalhador agrícola como também a do trabalhador urbano estavam impregnadas pela aventura e pela esperança de dias melhores.

Através dos documentos que possuímos, fica claro que a decisão de emigrar do grupo familiar dos Battistella não foi tomada pelo impulso da emoção, foi uma atitude muito bem pensada, decidida, certamente num consenso familiar. Essa idéia foi se amadurecendo gradativamente, devendo ter demandado muitos dias e horas de conversa, conseqüentemente horas de insônia, noites mal dormidas, muitas lágrimas e angústia.

Obviamente que as incertezas surgiam, ao se comparar, por exemplo: o trabalho diferente “Lavourar con il cafe”, o clima quente, hábitos novos, aprender uma nova língua “il portuguese”, a viagem de navio por 30 dias, o medo de morrer em alto mar, tornando-se comida de peixe, ou seja, ficar insepulto. Era, e foi, sem dúvida, uma decisão extremamente difícil, porém corajosa: do lado emotivo e sentimental, abandonaram a Pátria-mãe, a terra “dove era nato”, e os amigos; em contrapartida era a esperança de dias melhores, de poder sobreviver, criar os filhos com saúde, de progredir na vida, de ter oportunidade de um dia vir a ser um proprietário de terras.

A nossa assertiva inicial, de que a decisão de emigrar foi um fato maduro e resolvido familiarmente, comprova-se pelas datas de expedição dos passaportes: o de Pietro Battistela, por exemplo, foi expedido em 25 de março de 1887; já o de Lorenzo, em 1º. de fevereiro de 1888, ou seja, tal desejo foi resolvido entre eles um ano antes do embarque que se deu em 12 de fevereiro de 1888 pelo porto de Gênova. Pela data da expedição do passaporte de Lorenzo Battistella e do visto do Consulado Brasileiro em Gênova, no dia 11 de fevereiro de 1888, concluímos que nossos antepassados partiram de Bibano entre os dias 2 e 8 de fevereiro de 1888, pois a viagem de Pianzano até o porto de embarque, em Gênova, era de, no máximo, dois dias.


Passaporte de Pietro Battistella


Passaporte de Lorenzo Battistella


Na pesquisa que fizemos com os descendentes de nossa família, não encontramos nenhum relato sobre a viagem, porém, em livros sobre a imigração italiana, como Grama Humana – A Grama do Senhor (Remo Rômulo Farina , editora EST Edições, 464 págs.), descobrimos alguns relatos que nos levam a imaginar como foi a partida desse grupo, constituído de 37 pessoas, que saiu de Bibano, naquele longínquo fevereiro de 1888.

Certamente foi um dia histórico para o bairro de Bibano, pois, naquele dia, 3,5% de seus habitantes (na época Bibano possuía 1.129 habitantes) deixaram aquela população rumo ao Brasil; e, como de costume, devem ter se reunido em frente à Paróquia de São Martinho para uma missa de despedida, bem como para ouvir a palavra do Síndico (Prefeito), como o costume da época.

A despedida dos Battistella, certamente, não foi diferente do relatado pelos imigrantes da Província de Cremona: saíram de Bibano e foram embarcar no trem em Pianzano (cidade limítrofe de Godega di Sant’Urbano), a 2 km da Igreja de San Martinho, a principal da comunidade. Logicamente levaram os pertences no único meio de locomoção da época — os carroções puxados por burros.

A primeira etapa da viagem compreendia um percurso, de Pianzano a Milano, de 482 km, com inúmeras paradas, em cidades como Conegliano, Treviso, Vicenza, Tavernelle, Bergamo e em algumas das quais, por certo, outros imigrantes vênetos iam se juntando aos Battistella.
Os imigrantes, ao chegar ao porto de embarque, geralmente tinham de esperar, pelo menos, 24 horas pela partida do navio; relatos da época demonstram que, até nesse momento, os pobres italianos que partiam eram motivo de humilhação pelos compatriotas.

Após algumas horas à espera da partida à Gênova, os Battistella, juntamente com outros imigrantes do norte da Itália, acomodam-se nos vagões de “terceira classe”: alguns nos bancos de madeira; outros sentados nas malas ou caixotes; muitos outros no chão duro. Todo o espaço, assim, ocupado; esse amontoado de seres inquietos e inseguros, cujo único bem eram as bagagens e a esperança de dias melhores. O embarque dos imigrantes foi feito em dois navios: "Cirino", com destino ao Rio de Janeiro, e "Provence", no qual estavam os Battistella, com destino a Santos.

A primeira noite, no navio, não poderia ser diferente, pois, após algumas horas de navegação, os efeitos da maresia começavam a se pronunciar. O balanço do navio, apesar de estar ainda há poucas horas navegando, vai dando o resultado negativo para os marujos de primeira viagem. O conselho dado de que não devem pensar no balanço do navio, para evitar o enjôo, o deitar, faz com que os passageiros momentaneamente se acalmem. Porém para a grande maioria não surtiu o efeito desejado, porque, após algumas horas nos beliches, quando o navio começa a navegar em águas, um pouco mais revoltas do Mediterrâneo, o casco dá sinais de terríveis oscilações, e começa a corrida aos banheiros, barulho característico do vômito, o estalar dos detritos no assoalho, daqueles que não conseguem deixar rapidamente o recinto do dormitório, faz com que aquela calmaria inicial transforme o dormitório em um campo de batalha. Tombos provocados por pisar em detritos, crianças e adultos de olhos arregalados gemem, regurgitam. Os adultos que não são atingidos com o enjôo tentam acalmar os ânimos com explicações nem sempre animadoras.

O que mais apavorava-os era as condições de saúde: se a doença tomava alguns dos passageiros, era motivo de preocupações. Não havia médico a bordo; na maioria dos navios, era apenas a experiência em medicina do Capitão e do Imediato. O enjôo, distúrbios intestinais, gripes, pneumonias eram controlados precariamente, quando não se agravavam. O grande medo, a grande “Paura”, era a notícia de “peste a bordo”.

Relatos diversos, em livros os mais variados, como: Assim Vivem os Italianos, Brava e Buona Gente, Cem Anos pelo o Brasil, A Catar Fortuna e outros, relatam que a viagem era muito penosa, mas se, por um lado, a nostalgia era grande, por outro, a vontade de vencer era maior. A trilogia da viagem era: tempestade, comida e saúde a bordo. Encontramos descrições de momentos de desconcentração em alto mar, quando navios, em rotas próximas, navegavam algumas horas juntos, era o vestígio de que não estavam sós naquela imensidão de água. A única escala técnica para os navios que partiam de Gênova direto ao Rio de Janeiro, às vezes, era a Ilha das Canárias.

O navio “Provence”, que partiu de Gênova no dia 12 de fevereiro, chegou a Santos no dia 5 de março de 1888, levando 22 dias de viagem, portanto 8 dias a menos que o “Cirino”. Contudo nossos antepassados tiveram ainda mais uma viagem logo após desceram do navio, ou seja, de Santos seguiram de trem à Hospedaria de Imigrantes, em São Paulo, onde foram registrados no dia 6 de março de 1888.